O Caçador & O Cervo
Drinian Stahl mordiscava o lápis impaciente. Estava de pé em sua sala olhando atentamente cada livro espalhado pela mesa que agora contabilizava cerca de 10 exemplares, promovendo uma espécie de desorganização. Entretanto, se chegasse mais perto poderia perceber que cada página estava marcada com tiras de couro azul e todas com o mesmo assunto: “O Cervo Sorridente”. Havia semanas em que ele estudava este monstro, classificado por diversos autores como PERICULOSIDADE NOTA 45, em uma escala de 50. Suas mãos suavam, mas ansiavam pela missão, e sua mente ficava cada dia mais exasperada com sede de acontecimento.
Sentou. Deu-se por vencido. Não havia mais o que estudar. Era sua vigésima quinta missão, e ele não poderia mostra-se com medo, ou comedido. Era um caçador experiente de certa forma, habilidoso, descendente de uma das mulheres mais guerreiras de toda OSMO (Organização dos Sete Mundos de Orion). Não iria decepcionar. Ainda assim, as informações o deixavam aflito, principalmente as que eram listados pelo Autor Brágir.
O Cervo Sorridente é encontrado principalmente na Floresta de Teias. A longa distância costuma-se parecer um cervo do Mundo do Meio, entretanto quando está mais perto podemos perceber que seu corpo não é formado por pelos e carnes, e sim de Substância Sombria que aflui entre ele. Possui habilidade rastreadora e geralmente se movimenta pelas sombras, formando uma espécie de invisibilidade. O seu ataque principal é lançando quando este sorri, evocando as sombras de seu corpo que esmagam sutilmente o adversário. (BRÁGIR, 1459)
Toc-Toc. Drinian tirou os olhos do livro, ajeitou sua capa verde escura ornada em dourado e prateada, e levantou-se.
- Pode entrar.
Eudora Beviláqua empurrou a pesada porta de carvalho negro, entrou ajeitando a cabeleira ruiva e cacheada que cobria quase todo seu rosto redondo. Suas mãos sempre retesadas junto ao corpo cobertas pela capa roxa e dourada, símbolo da segunda equipe mais importante de OSMO. Antigamente, Drinian ficava constrangido por ser treinado por ela, mas depois de alguns
anos se sentia bastante agradecido por isso. Ela se sentou no pufe cor de sangue perto da lareira, se jogando e fechando os olhos.
A sala era rústica, composta por móveis de madeiras, tapetes em tons de marrom e alguns quadros antigos. Ficava na torre direita do castelo, que abrigava várias pessoas. Por trás da sala ainda havia seu quarto e um banheiro, pequenos e aconchegantes, feitos na medida para a privacidade dos caçadores.
- Estou exausta. Dois monstros em três noites. Estavam aterrorizando uma das vilas de Nanna, ao centro-oeste de Orion. Devastaram as plantações de trigo, único sustento destas vilas.
- Não havia outras equipes para cuidarem dos dois casos? – Drinian perguntou, enquanto arrumava os livros em sua mesa de madeira.
- Chad e Pax estão em viagem pelo Mundo Superior. Todo o Alto Comando está confiante que haverá mais um Caçador em Esir, mas acho difícil. E outras equipes como a de Bailor, estão no Mundo do Meio. Sobrou para a minha resolver isso.
Drinian riu, sabia perfeitamente que a “equipe” de Eudora era composta apenas por ela. Os demais caçadores eram simplesmente coadjuvantes, ninguém matava tão bem quanto ela, ninguém estava tão apto quanto a linda ruiva que se sentava em sua sala.
- Preparado para sua próxima missão?
- Não percebeu meu empenho? – Drinian disse expondo sua bagunça com as mãos como se fosse algo muito importante.
Eudora desdenhou levantando a sobrancelha direita.
- Você se lembra da minha primeira lição...
- “Nunca subestime sua presa, até lidar com sua presença.” – Os dois falaram ao mesmo tempo.
- Que bom que está aprendendo, garoto. – Disse Eudora, como se fosse anos mais velha que Drinian, algo que não era verdade. Ela tinha 26, enquanto ele beirava os 22.
Os Caçadores de Orion, comumente chamados de Membros da OSMO, serviam apenas ao propósito de defender os Sete Mundos contra monstros que abrangiam várias espécies, desde simples fantasmas de irradiação, a dragões, animais de matéria sombria, qualquer espécie que ameaçasse o equilíbrio do universo conhecido. O universo era dividido em Sete Mundos através de camadas dimensionais, todas convivendo ao mesmo tempo, porém nem todas sabiam que asdemais existiam.
Drinian Stahl saíra do Mundo do Meio, geralmente habitado por humanos que evoluíram através de sua tecnologia e que há séculos haviam se esquecido do místico. O Mundo Superior ou chamado de Esir consistia em algo mais etéreo, composto por formas humanas que não eram simplesmente de carne osso, mas sim de matéria resplandecente. Esta sociedade se dedicava aos estudos da magia, matéria, tecnologia, entre outras coisas. Eram grandes responsáveis pelo conhecimento existente entre as dimensões.
O Mundo Inferior era rico, chamado também de Pulur, era verdejante. Formado de puro misticismo, florestas coloridas deslumbrantes, rios de matéria resplandecente, e espécies de todos os tipos de animais que eram racionais. Drinian a apelidou secretamente de Fábula, e diversas vezes escapava para lá com o intuito de reconstituir a mente. Havia também o Mundo Oeste, chamado de Orion, lugar da OSMO e de seus Caçadores. Orion era seco, suas cores predominantes eram cinza, bege e marrom. A vida por ali era escassa, entretanto era um lugar perfeito para a procriação de monstros, por isso a Fortaleza do Alto Comando acabara por se instalar nestas terras, como forma de combate e treinamento.
E as demais dimensões tinham suas peculiaridades, como o Mundo Leste chamado também de Lafna, formado apenas de estrelas, nebulosas e matéria escura ou sombria. Muitos cientistas e poetas de Esir constatavam que a vida como conhecíamos era impossível de se estabelecer por lá, era um mundo vazio. Enquanto o Mundo Noroeste, conhecido como Sigrun, era feito de somente água, com diversos seres diferentes. Por muitas vezes funcionava como um transporte dimensional, sendo que suas águas eram mágicas feitas de matérias resplandecente e sombria. Além deste, por último, havia o Mundo Sudoeste, nomeado como Groenir. Onde o calor era insuportável para seres humanos, animais racionais, e seres de qualquer matéria. Os seres do fogo não conseguiam atravessar os outros mundos, era considerado proibido pelas demais dimensões. Não se comentava muito sobre Groenir, tudo parecia resumido a uma lenda para crianças.
No dia seguinte, Drinian havia descido ao porão para completar seu arsenal. Pensou em diversas maneiras de matar o monstro, mas na sua imaginação nenhuma delas teria um efeito prático. Olhou ao redor, o porão era espaçoso e claro, as paredes tinham isolamento acústico e as mesas longas de madeira barata continham caixas e caixas de armas. Havia bestas de todos os tamanhos, revólveres prateados, armas de longo alcance, facas e espadas que eram bastante comuns entre os caçadores, entre outros objetos. Ele acabou por escolher uma besta de tamanho médio feita de aço e madeira com detalhes em runas azuis, pegou as flechas e as guardou em uma aljava qualquer.
Além da besta média, carregava consigo a adaga que havia ganhado de Pax semanas depois de ser recrutado como caçador por ele no Mundo Médio. A adaga fora especialmente forjada nas terras fluviais de Sigrun, com o cabo esverdeado feito de safira tão reluzente quanto sua lâmina que adaptava-se a luz do ambiente. Drinian as vezes pensava em como a adaga fora feita em um mundo que continha somente água, mas o procedimento estava além da compreensão do caçador.
O castelo da OSMO para as pessoas leigas poderia parecer uma bagunça estrutural de longe, mas sua arquitetura era inspirada nas casas vitorianas do Mundo Médio do século XIX, uma construção quadrada com quatro torres sobressalentes. Ao mesmo tempo também possuía detalhes glamorosos de outras eras como as pilastras gregas que compunham a frente em cores brancas e azuis escuro, as janelas também quadradas das torres com pórticos de carvalho, e as escadarias de mármore que refletiam o céu. Era um ponto de destaque no meio do nada de Orion, mas que contrastava com o jardim seco e sem vida que o rodeava.
Os caçadores costumavam se reunir no refeitório na noite anterior a caçada como um ritual com as mesas cheias de carne, batatas assadas e doces. Acreditando que uma boa refeição daria poder e energia suficiente ao caçador. Apesar de grande, o refeitório lembrava uma taverna com algumas mesas redondas dispostas, um balcão de especiarias e bebidas, e o chão de madeira corrida. Drinian estava sentado em uma das mesas do fundo observando as pessoas, costumava fazer isso enquanto matutava os pensamentos, passando o dedo pela taça que refletia metade das suas feições. Os cabelos despenteados louros estavam curtos, os olhos amarelos continham olheiras profundas e arroxeadas, a boca carnuda estava esboçada em um sorriso presunçoso, tudo emoldurado em seu rosto angular e imberbe. O rosto que em toda sua simetria destoava de seu corpo alto e desengonçado de 1,95m, magro e com mãos ágeis.
- Acho que você não está se divertindo. – A voz grave ressoou em seus ouvidos acima das conversas.
A voz pertencia a Ivar Fawkes, descendente da segunda linhagem mais antiga de caçadores nascidos em Orion. Suas habilidades eram comentadas nos quatro cantos da sociedade, sua influência era consideravelmente importante para o Alto Comando, mas sua presença era um tanto desagradável empertigado em soberba. A caneca em suas mãos bateu na mesa derramando grande parte da bebida preferida dos Sete Mundos, um espeço liquido vermelho com micro pedaços cintilantes de frutas produzidas em Esir que provocava grande euforia quando tomado em excesso.
- O ato de achar é o significado da inconsistência, certo? – Drinian disse enquanto Ivar sentava a sua frente.
- Depende da situação. – O homem lembrava sutilmente um urso gigante, alto e musculoso com os cabelos médios esverdeados e a pele queimada de sol.
Apesar aparência rude, Ivar era elegante em seu modo de andar.
Drinian repuxou os lábios, sua expressão deixava claro o desgosto e os olhos beiravam o desinteresse. Ele fazia questão de não esconder suas insatisfações que geralmente não melhoraram ao longo dos quatro anos em que se descobriu caçador, alguns o bajulavam por ser quem ele era e outros mostravam seu desdém como Ivar. Isso não importava muito, nunca fora de fazer amizades e conviver passivamente em sociedade. A única regra específica era não ser mal educado, pois o tempo em que passou no Hospital de Recuperação Mental de Kalasaya no Sul da América do Mundo Médio havia demonstrado as consequências de palavras com dupla interpretação.
- Não fique carrancudo, apesar de estarem comemorando sua caçada, creio que será breve. Talvez sua morte esteja próxima. Não precisarão comemorar mais por você. – Ivar riu com as palavras jogadas ao vento que continham um toque de ameaça. Seus olhos acinzentados brilharam com a possibilidade.
Drinian levantou-se com a capa esverdeada embolada em suas mãos, baixou suavemente e sussurrou nos ouvidos de seu companheiro: - Então direi que está sendo muito burro por cogitar essa situação. Sorriu, e seguiu a passos descontraídos para seu quarto com o humor melhorado ouvindo Ivar bufar ao longe.
Apesar de satisfeito, Drinian não conseguiu fechar os olhos aquela noite. Algo o incomodava, mas ele não sabia decifrar o sentimento, não sabia a razão para tal desconforto. Sentou-se na cama várias vezes, esfregando os cabelos e olhando para a janela. A noite na torre estava silenciosa, pois a maioria dos caçadores tinham se retirado do refeitório, provavelmente muito embriagados para fazerem barulhos. A bebida não despertara nada em Drinian além de um efeito momentâneo de felicidade, mas passara e fora substituído pela insônia.
Quando o sol surgiu entre as árvores secas aos arredores do castelo, Drinian estava sentado na beirada de sua janela sentindo a brisa fresca afiando mecanicamente sua adaga com suas vestes jogadas ao chão. Se alguém visse ao longe aquela cena ficaria horrorizado em como a nudez era algo simples, mas caso alguém olhasse de perto poderia notar as marcas profundas em
seu corpo. Cada uma das cicatrizes contaria um momento, escreveria uma história sobre o garoto que virara homem rapidamente, mas a mais profunda delineada entre suas costelas era a pior delas. Sua cicatriz não era bonita, desfigurara o lado direito em cinco rasgos que provava para ele mesmo que sua loucura tinha fundamento. As garras do lobisomem que matara sua mãe aos seis anos de idade eram reais, e somente quando completara dezessete anos suas suspeitas foram confirmadas.
- Posso entrar? – A voz de Eudora ressoou do outro lado da porta.
- Espera um momento. – Drinian saiu da janela aos tropeços, vestiu as calças e jogou uma blusa branca por cima. Se bem que não fazia tanta diferença, sua treinadora o havia visto em situações piores. O resgatara de um dos testes da OSMO mais difíceis, e ele estava consequentemente nu e desmaiado. – Agora pode.
Eudora entrou vestida informalmente, blusa e calças jeans, mas não deixava de ser assustadora. Os olhos castanhos piscaram para Drinian pousando rapidamente na adaga em suas mãos. – Quero me juntar a você hoje à noite, posso?
- Somente se você me deixar matar o Cervo Sorridente, caso contrário não será possível. – Drinian sorriu com a expressão de surpresa falsa estampado no rosto de Eudora.
- A missão é sua, você mata.
- Perfeito. Está habilitada para me acompanhar. – Ele se jogou na cama preguiçosamente.
A noite não demorou muito a chegar, Drinian e Eudora passaram a tarde preparando-se para a caçada. Estocando suprimento para alguns dias, armas e objetos para acampamento. Para se identificarem como caçadores, o costume era prender no braço esquerdo uma faixa com a cor de sua capa respectiva ao patamar exercido dentro da OSMO, pois andar com suas capas deixavam rastros, algo que poderia comprometer a missão. Eles saíram do castelo sendo cumprimentados pelos demais com desejos de boa sorte e alguns olhares desconfiados, passaram pelos imensos portões protegidos pela Nébula, a nebulosa elétrica que residia por cima da propriedade como proteção. Ela envolveu os dois fazendo com que os pelos eriçassem como um abraço, e Eudora e Drinian se curvaram e seguiram para a floresta.
Do castelo até a Floresta de Teias levava aproximadamente uma noite e meio dia a pé com o caminho vasto passando por algumas vilas e plantações que resistiam ao tempo de escassez. Quando passaram por elas, Eudora e Drinian foram agradecidos com pães frescos, bebidas e muitas rezas rápidas de boa sorte pelos aldeões. Ele nunca se acostumava, suas bochechas avermelhavam com os presentes, com os desejos de boa caçada, com a recepção que os caçadores recebiam ao longo do caminho. A felicidade das pessoas em vê-los contrastava com os tons de marrom fazendo com que a paleta de cores do caminho ficasse desagradável aos olhos do garoto, e ele sabia que encontraria pontos verdes apenas quando chegassem ao início de seu destino.
A dupla de caçadores parou debaixo das árvores que cercavam a Floresta de Teias, verdes e grossas como mangueiras, mas com folhas secas e amareladas preste a cair. Era raro se ver árvores tão grossas e próximas da floresta, e sabia-se que estas foram plantadas pelos próprios aldeões para encobrir todo perigo e toda feiura que habitava o núcleo adiante. Drinian escorou-se no tronco e olhou cuidadosamente para dentro, que durante dia mostrava apenas sequidão. A Floresta de Teias possuía esse nome por justamente conter árvores de aspecto velho, entrelaçadas umas nas outas a partir de suas folhas que tinham a consistência de teias de aranha. Seus galhos eram frágeis, rachados e constantemente caiam, não havia frutas e nenhuma cor além de tons de bege. Mas quando suas teias caiam, transformavam-se em folhas vermelhas e laranjas que preenchiam todo o chão da floresta, escondendo terra movediça, animais, entre outras coisas.
- Você precisa comer. – Disse Eudora oferecendo um pedaço de pão com manteiga para seu companheiro.
- Não estou afim. – Drinian recusou com um sorriso breve e irônico.
- Espero que você não desmaie no meio do caminho, pois eu não irei te carregar o trajeto todo. E provavelmente sua inconsequência ira matar nós dois.
- Como você é carrancuda! Consegue prever alguma coisa, vidente? Estamos aqui para matar, e não para comer ou fazer exercícios. – Drinian bufou.
Eudora contou ao longo do caminho que o Cervo Sorridente aparecia geralmente a noite, pois aqui em Orion ele estava entre os predadores mais perigosos que habitavam a Floresta de Teias. Em outros mundos, talvez, em sua forma carnal seria apenas uma caça, um alimento inofensivo para os demais. Mas aqui, ele era temido. E a noite chegara com a lua ascendendo ao céu com todo o seu esplendor gigante e amarelo iluminando levemente a terra.
Era um espetáculo, as cores noturnas se resumiam em vinho e azul índigo consagrado com amarelo suave. E Drinian adorava olhar para mistura diante dos seus olhos, sentia que a noite lhe pertencia e que revigorava suas forças mesmo que mentais.Ele sorriu, e assim adentraram a floresta.
O vento perpassou ruidosamente os rostos dos caçadores enquanto estes adentravam a floresta, seus passos eram leves, perfeitos para manter a discrição necessária para não assustar a presa. Abaixavam a cabeça enquanto se esgueiravam entre as árvores, sempre com uma arma a posto em suas mãos, escutando o ribombar da vida presente. Quando perceberam que estavam no meio da floresta Eudora parou, retirando do bolso um pequeno frasco de vidro preto contendo um líquido vermelho vibrante quase neon, despejou em seus dedos e passou em seus olhos por cima das pálpebras, e depois fez o mesmo com o seu companheiro.
O líquido produzido em Esir permitia que os caçadores ou qualquer outra pessoa enxergasse durante a noite, fazendo com que este observasse as massas de calor e assim localizasse o que pretendia.
Drinian abriu os olhos novamente, e a Floresta de Teias saltou em sua visão. Enxergava massas distintas, miúdas e médias que rondavam os galhos, o chão e outros animais que tentavam se esconder diante da presença deles. Em um momento, sentira que o Cervo Sorridente não poderia estar tão longe deles, sentira que devia abatê-lo. Depois de algumas horas de espreita, Eudora cutucou levemente com sua faca a costela de Drinian que estava prestando atenção ao lado leste da floresta. Ele a encarou e perguntou silenciosamente com os olhos o que ela queria, Eudora apontou para o norte mostrando levemente uma pata pequena e estreita que pertencia ao Cervo Sorridente. Este que comia calmamente as larvas entre as folhas, sem perceber que os caçadores lhe observavam.
- Esta é a chance. – Drinian sibilou para Eudora.
Drinian olhou em volta escolhendo a mais grossa árvore ao seu redor, tendo esta galhos que se espalhavam por uma grande distância se entrelaçando preguiçosamente a outros galhos, conectando as árvores entre si. Devagar colocou as mãos em seu troco, sentindo a pulsação do ser vivo, logo após deu os primeiros impulsos para a escalada. Assim que chegou a um dos galhos mais resistentes, Drinian estendeu o braço pegando fortemente nas mãos de Eudora e a puxando para si. Os dois ficaram no mesmo galho fazendo com que os cabelos ruivos de Eudora roçassem grosseiramente no rosto dele, entretanto não achara ruim, pois o perfume que exalava era inebriante. Uma mistura secreta de flores suaves com pontos de baunilha e no fundo o cheiro próprio dela, único. Aquilo despertou outras sensações em seu corpo como o toque de suas peles durante a última prova de resistência. Intenso, furtivo, inesquecível.
Em poucos minutos o Cervo Sorridente estava na mesma área que os caçadores, concentrando-se em sua comida. Sua extensão corporal era larga perpassando por 1,80m de comprimento a 1,20m de altura, a Substância Sombria era negra e estava densa formando um aspecto pegajoso aos olhos, os chifres protuberantes refletiam a luz da lua e dependendo do modo como o animal se movimentava ficavam invisíveis. Drinian mordeu os lábios e sussurrou para Eudora: – Atacar! – E pulou serenamente pendendo para o lado provocando uma cambalhota antes de pousar no chão atrás da presa. A adaga estava em mãos, mas ao mesmo tempo em que tentou atravessar a barriga do animal, este o encarou.
Os olhos do cervo tão negros quanto sua forma conectaram-se rapidamente os olhos amarelos de Drinian, levando-o a uma sensação até então pouco revisitada. Sua mente explodiu em fragmentos, cores, cheiros e imagens, selecionando apenas um momento, uma única lembrança. O puxão o levou para aquela tarde tenebrosa de dezessete anos atrás, seu coração apertou, suas mãos suaram e os olhos marejaram.
Drinian estava no Mundo Médio, contemplando a vista do mar rodeado pela Mata Preservada de Kalasaya ao sul da cidade. Havia uma moça de cabelos chocolates sentada em uma toalha azul no pé das araucárias com um garoto loiro e rechonchudo; os dois sorriam enquanto o menino coloria os desenhos dispostos e comia um pedaço de bolo de chocolate. Eleonor, mãe de Drinian era austera e ao mesmo tempo delicada, seus olhos de tons suaves de amarelo como o do filho carregavam um pesar, uma dor. E observando aquele momento tão intrínseco em sua memória a sensação de incapacidade ficou maior e o encheu desde os fios de cabelo as pontas dos pés fazendo com que as lágrimas escorressem sem pausa.
Mas o momento de repente mudou, e as mãos de Drinian estavam ensanguentadas enquanto ao fundo ouvia o lamento estridente da criança, o seu lamento. O corpo de Eleonor estava em seus braços, rasgados em todas as partes, o sangue desvanecia ainda quente e suas mãos tentavam debilmente agarrar o filho pequeno choroso do outro lado. Drinian olhou para si mesmo tão pequeno com três arranhões na costela direita, e o grito dos dois se uniram em um só.
Eudora havia assistido a tudo com as mãos apertadas em punhos. Drinian esfaqueara o Cervo Sorridente mais de dez vezes, a substância sombria envolvera todo o seu corpo, seu rosto estava respingado de manchas negras. A cena era grotesca. Os olhos do humano e do animal tornaram-se brancos enquanto um era atingido por dentro, rasgado sem piedade, e o outro completava a tarefa sem um traço de misericórdia. Depois de morrer, o cervo desapareceu deixando apenas sua galhada brilhante e um Drinian em estado letárgico. Ela desceu do galho, vendo seu que colega começara a tremer violentamente depois do ato estando a um passo para a convulsão.
Ela não hesitou, deu-lhe três tapas no rosto para despertá-lo. Drinian acordou em um susto tentando focalizar inutilmente o rosto de Eudora, respirou fundo quando seu cérebro lhe informou que estava na Floresta de Teias e não em Kalasaya. Olhou novamente para o rosto assustado em sua frente e depois em volta para as mãos cheias da substância pegajosa, para a adaga que ao piscar parecia ensanguentada.
Os olhos não aguentaram, derramaram todas as lágrimas contidas durante anos pelo falecimento da mãe ocorrido em sua frente, seus soluços doíam enquanto a marca na costela ardia. O crescimento dentro dos lares de repouso psiquiátrico o esmagou; a falta da mãe durante os longos anos, a descrença de que era alguém normal vieram à tona. As visões que o transportaram para a Mata Preservada, as insônias que o perseguiam até os dias atuais, e as formas de lobos que crepitavam em sua mente em seus pesadelos...
Tudo misturou-se a dor, desespero, angústia. E naquele momento Drinian percebeu que o nome do monstro fazia sentido de modo irônico, pois o Cervo Sorridente despertava em seu rival todos os sentimentos que este tentou esconder por toda vida.
A companheira o abraçou, colocando-o em seu peito e retirando a adaga de sua mão sutilmente. E ficaram por horas, ouvindo o choro baixo e apertado unindo-se ao farfalhar das árvores, do vento, do barulho dos pequenos e grandes animais, a pulsação da vida da Floresta de Teias.